Autoria: Filipe Sanches Afonso.
1. A Invasão Tecnológica
Há cerca de 20 anos, Richard Susskind previu que os advogados usariam regularmente e-mails para comunicar com os clientes[1]. O tempo deu-lhe razão. Há 10 anos atrás, o mesmo autor previu que «os alicerces do contencioso [estariam] assentes numa combinação de disclosure eletrónico e e-filing nos tribunais»[2]. Uma vez mais, o tempo deu-lhe razão. Atualmente, o autor prevê que as novas tecnologias são um dos principais fatores impulsionadores de uma transformação relevante do mercado jurídico[3]. O tempo, muito provavelmente, dar-lhe-á razão novamente. A tecnologia está, de facto, a percorrer o seu caminho no mercado jurídico.
De acordo com a «Lei de Moore», o número de transístores que pode ser integrado num computador duplica a cada 18 meses a dois anos[4]. Isto significa que o aumento de potência dos computadores é exponencial, «começando devagar e quase impercetível, mas para lá do ponto de inflexão torna-se explosivo e profundamente transformativo»[5]; e, muito possivelmente, já estamos nesse ponto de inflexão[6].
A Inteligência Artificial (IA) é uma destas novas tecnologias. A IA é um subcampo da ciência computacional[7] e é usualmente definida como «a ciência de capacitar os computadores para fazer coisas que requerem inteligência quando feitas por seres humanos»[8]. É interessante notar que tanto a IA como outras novas tecnologias já estão disponíveis nos mais variados campos jurídicos e já estão a ser efetivamente utilizadas por sociedades de advogados e tribunais judicias pelo mundo fora.
Um exemplo disso mesmo são os serviços assentes na tecnologia predictive coding[9]. Empresas como a Relativity, a Moduse a Open Text providenciam serviços que operam com base nesta tecnologia e são já utilizados pelas equipas de contencioso em sociedades de advogados. Veja-se, por exemplo, o caso dos EUA[10], da Irlanda[11] ou, mais recentemente, do Reino Unido[12], onde os tribunais permitiram expressamente o uso destas ferramentas.
Outro exemplo será, certamente, o das tecnologias que permitem aos seus utilizadores procurar conteúdo jurídico, tal como a Ross Intelligence (ROSS). A ROSS e outras ferramentas semelhantes permitem que os utilizadores coloquem questões em linguagem corrente e, de seguida, analisa um conjunto exaustivo de materiais jurídicos e devolve uma resposta com o seu nível de confiança relativo às leis, jurisprudência e doutrina analisadas[13].
Este contexto, como explicarei brevemente, poderá mudar a forma como os tribunais trabalham em arbitragem internacional. Em particular, as novas tecnologias poderão substituir parcialmente ou complementar o trabalho atualmente desenvolvido pelos secretários arbitrais, responsáveis por assistir os tribunais arbitrais.
2. Secretários Arbitrais: o Quarto Árbitro?
Também há 20 anos atrás, Constantine Partasides sugeriu que os secretários arbitrais poderiam estar a atuar como quarto árbitro em arbitragem internacional[14]. O autor pretendia discutir, num tom evidentemente provocativo, o papel que os secretários arbitrais vinham assumindo, questionando a legitimidade do seu envolvimento no processo arbitral. Desde então, a discussão não evoluiu muito e os regulamentos sobre o assunto são limitados e divergentes.
É uma prática estabelecida em arbitragem internacional a de os árbitros procurarem a assistência de secretários arbitrais para executarem não só funções administrativas – tal como a organização de reuniões e audiências –, mas também funções mais substantivas, como as de pesquisar sobre temas jurídicos, elaborar resumos das peças processuais e redigir parcialmente decisões arbitrais[15].
Contudo, é genericamente reconhecido que os árbitros estão sob um dever de não delegação das suas responsabilidades ou funções a terceiros[16]. Deste modo, o papel dos secretários arbitrais foi sempre um tópico controverso. Os argumentos esgrimidos contra a utilização de secretários arbitrais – pelo menos no que diz respeito a certas funções – são fundados na natureza intuitu personae do mandato do árbitroe, por isso, no facto de este mandato não dever ser partilhado com terceiros que não os restantes árbitros[17]. Para alguns comentadores, o envolvimento de um assistente compreende um risco de influência ilegítima no tribunal arbitral[18].
3. Inteligência Artificial: o Quinto Árbitro?
As tecnologias supra mencionadas e tantas outras – tal como as empregues para análise de documentos ou criação de notas ou memorandos – já estão desenvolvidas, disponíveis e em utilização no mundo jurídico, pelo que considero que os assistentes pessoais poderão começar a dar lugar a assistentes tecnológicos. Ainda que, previsivelmente, os secretários continuem a ser muito utilizados – nomeadamente, por todos os benefícios que decorrem da formação de jovens advogados na prática arbitral quando atuam como secretários[19] –, algumas das suas funções podem passar a ser realizadas por computadores mais rápidos e mais precisos.
Posto isto, seria interessante deslocar a discussão sobre o uso de secretários arbitrais para o uso de programas de IA. Se um árbitro usa uma ferramenta de IA para fazer uma pesquisa jurídica e depois utiliza a jurisprudência, legislação, regras, diretrizes, doutrina ou qualquer outra informação providenciada pela ferramenta de IA numa decisão, estará efetivamente a delegar parte das suas funções. Independentemente da eventual revisão realizada pelo árbitro dos resultados fornecidos pelo computador, parte das funções do árbitro relacionadas com a pesquisa jurídica não foram, de facto, executadas por ele.
As circunstâncias desta delegação são quase idênticas às da delegação ocorrida entre os árbitros e os secretários arbitrais. A diferença reside, apenas, na natureza do mandatado, que transita de uma pessoa física para um computador. Nesta medida, o debate sobre o uso de secretários arbitrais pode (e deve) ser também aplicado ao uso de instrumentos de IA para este efeito.
Desta forma, as funções que são consideradas como validamente delegáveis em secretários devem ser também consideradas como validamente delegáveis em computadores. Se, em regra, ao abrigo das leis e regulamentos aplicáveis em arbitragem internacional, é permitido aos secretários fazer pesquisas jurídicas, resumos de peças processuais ou da prova produzida e redigir partes não controversas das decisões dos tribunais arbitrais, não parece existir fundamento que justifique uma posição diferente quanto à validade da delegação quando feita a um computador.
Com efeito, desde que o uso do programa de IA não influencie negativamente o processo de decisão do tribunal, não haverá razão para que não seja admitido nos mesmo termos em que os secretários o são. Na verdade, as vantagens associadas à utilização de secretários, tal como o aumento da eficiência, são fomentadas pelo uso de ferramentas de IA[20]. Donde, parece-me que a posição em relação à utilização de secretários arbitrais pode, em geral, ser analogicamente aplicada ao uso de instrumentos de IA.
Não obstante, tema mais complexo será o de decidir se as funções que não são delegáveis nos secretários poderão, neste novo cenário, ser delegadas nos computadores. Por exemplo, se uma ferramenta de IA capaz de analisar criticamente a credibilidade de uma certa prova ou, até, de desenvolver uma análise jurídica de um caso for utilizada, estará a realizar uma função que, em regra, os secretários não podem realizar. Apesar do impacto positivo na gestão do processo pelo tribunal, esta delegação não seria certamente bem-recebida pelos defensores de uma abordagem mais restrita à obrigação do tribunal de não delegar as suas responsabilidades em terceiros.
Se antes defendi que o que podem os secretários também podem os computadores, agora tendo a rejeitar o argumento inverso que concluiria que o que não podem os secretários também não podem os computadores. Com efeito, se antes a natureza do mandatado justificava uma decisão igual, agora a natureza do mandatado poderá justificar uma decisão diferente.
De facto, porque os computadores não são pessoas físicas afetadas de forma permanente por prejuízos e tendências, poderão estar melhor posicionados que os secretários para realizar funções mais substantivas, na medida em que o risco de uma interferência parcial no processo de decisão do tribunal é menor ou inexistente[21]. Com efeito, com computadores em vez de secretários, poder-se-á prever (ou esperar) a adoção de uma abordagem mais flexível no que diz respeito ao direito dos árbitros em delegar parte das suas tarefas.
De resto, esta abordagem seria certamente mais condicente com a realidade da prática arbitral, em que os árbitros não raras vezes delegam diversas funções, administrativas ou mais substantivas, em secretários e advogados juniores dos escritórios em que exercem atividade.
Dito isto, parece-me oportuno colocar a seguinte questão: podem as ferramentas de IA assumir num futuro próximo o papel de quintos árbitros, tal como os secretários assumiram décadas antes o papel de quartos árbitros? Considerando as novas tecnologias disponíveis e o número de empresas a desenvolver software especificamente para o mercado jurídico, a resposta parece ser afirmativa. Poder-se-á até contemplar a possibilidade de programas de IA assumirem um cargo no “pódio”, i.e., servindo como um dos elementos de um tribunal de três membros ou até decidindo a disputa por si só enquanto árbitro único.
A estas questões mais particulares sucede uma pergunta mais genérica, mas certamente não menos importante, que é a de saber como a comunidade arbitral vai reagir a esta escalada tecnológica. Estará disposta a adaptar-se e incorporar instrumentos disruptivos que serão responsáveis por uma mudança do status quo e que, eventualmente, irão colidir com alguns regulamentos ou diretrizes?
Na minha opinião, independentemente da posição que cada um adote em relação aos poderes dos árbitros para delegar funções em terceiros, as pessoas envolvidas no desenvolvimento da arbitragem internacional devem estar abertas a esta transformação. Só uma comunidade preparada será capaz de adaptar o quadro atual a um novo contexto, evitando, por oposição, forçar o novo contexto a adaptar-se a uma conjuntura antiquada.
Tal como Alfred Korzybski afirmou, «o mapa não é o território»[22]. O modelo da realidade não deve ser confundido com a própria realidade. Pelo que, se a realidade se altera, o modelo deve ser adaptado em conformidade.
Nota do Autor:
Este artigoé baseado na tese de mestrado submetida no contexto do LL.M. em Comparative and International Dispute Resolution, na Queen Mary University of London. A tese, que em breve estará publicada, aborda em profundidade os temas aqui apenas brevemente tratados.
[1] Richard Susskind, The Future of Law, OUP, 1996, Parte V.
[2] Richard Susskind, “Hold to your seats, change is getting faster”, The Times, 24 de janeiro de 2016, referenciado em Thomas Schultz, “Information Technology and Arbitration: A Practitioner’s Guide”, Kluwer Law International, 2006, Prefácio por Gabrielle Kaufmann-Kohler. Tradução portuguesa livre do original: «the foundations of dispute resolution [would] be rocked by a combination of electronic disclosure, e-filing in the courts».
[3] Richard Susskind, Tomorrow’s Lawyers: An Introduction to Your Future, OUP, 2 edn, 2017, ch. 1 3.
[4] A Lei de Moore é uma tendência tecnológica identificada pelo cofundador da Intel, Gordon E. Moore, em 1965.
[5] Ray Kurzweil, The Singularity Is Near, Penguin, 2005, p. 10. Tradução portuguesa livre do original: «starting out slowly and virtually unnoticeably, but beyond the knee of the curve it turns explosive and profoundly transformative».
[6] John O. McGinnis e Steven Wasick, “Law’s Algorithm”, Northwestern Univ. Sch. of Law Pub. Law & Legal Theory, Series no. 12-22, 2013, p. 3048.
[7] Kris Hammond, “What is Artificial Intelligence?”, Computer World, disponível em https://www.computerworld.com/article/2906336/emerging-technology/what-is-artificial-intelligence.html (consultado em 14 de outubro de 2018).
[8] Jack Copeland, “What is Artificial Intelligence?”, disponível em http://www.alanturing.net/turing_archive/pages/reference%20articles/what%20is%20ai.html (consultado em 14 de outubro de 2018). Tradução portuguesa livre do original: «science of making computers do things that require intelligence when done by humans».
[9] Predictive coding é um algoritmo que pode ser ensinado a analisar um conjunto de dados eletrónicos para identificar de forma precisa certos tipos de documentos.
[10] Moore v Publicis Groupe, 11 Civ 1279 (ALC) (AJP) (24 de fevereiro de 2012).
[11] Irish Bank Resolution Corporation Ltd v Quinn [2015] IEHC 175 (3 de março de 2015).
[12] Pyrrho Investments Ltd v MWB Property Ltd [2016] EWHC 256 (16 de fevereiro de 2016).
[13] Karen Turner, “Meet ‘Ross’, the newly hired legal robot”, Washington Post, disponível em https://www.washingtonpost.com/news/innovations/wp/2016/05/16/meet-ross-the-newly-hired-legal-robot/ (consultado em 14 de outubro de 2018).
[14] Constantine Partasides, “The Fourth Arbitrator? The Role of Secretaries to Tribunals in International Arbitration”, Arb. Int’l, 2002, p. 18.
[15] Michael Polkinghorne e Charles B. Rosenberg, “The Role of the Tribunal Secretary in International Arbitration: A Call for a Uniform Standard”, Dispute Resolution International, outubro 2014, vol. 8, n. 2, pp. 110 et seq.
[16] Ver, por exemplo, Código de Ética da AAA, Canon V(c), as Regras de Ética da IBA, Artigo 2(3), e o caso nos tribunais ingleses Threlfall v. Fanshawe (1850) 19 LJQB 344 (QB).
[17] Eisemann, “Déontologie de l’arbitrage commercial international”, Rev. arb., 1969, pp.217-229, e Constantine Partasides et. al, “Arbitral Secretaries” in Albert Jan van den Berg (ed), International Arbitration: The Coming of a New Age?, ICCA Congress Series, Kluwer Law International, 2013, p. 328.
[18] Ibid.
[19] Pierre Lalive, “Inquietantes derives de l’arbitrage CCI (sur un récent “Oukase” du Secrétariat de la Cour d’Arbitrage CCI)”, ASA Bulletin, dezembro de 1995, 4, pp. 634-640.
[20]Young ICCA, “Young ICCA Guide on Arbitral Secretaries”, disponível em https://www.arbitration-icca.org/publications/Young_ICCA_Guide_on_Arbitral_Secretaries.html (consultado em 14 de outubro de 2018).
[21] Problema diferente e que poderá gerar controvérsia será o modo como o programa de IA foi treinado. Veja-se, por exemplo, a questão em torno do software de IA criado pela Amazon para analisar os CVs automaticamente – que era preconceituoso contra as mulheres – ou, ainda, a polémica em torno do programa Compas utilizado por um tribunal americano para avaliação de risco – que era preconceituoso em relação a pessoas negras.
[22] Alfred Korzybski, “A Non-Aristotelian System and its Necessity for Rigour in Mathematics and Physics”, American Association for the Advancement of Science, Science and Sanity, 1931, p. 58. Tradução portuguesa livre do original: «the map is not the territory».
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