Autoria: Francisco Cortez.
… defendido! A Cour de droit civil do Tribunal federal suíço, por sentença recente de 20 de Fevereiro de 2018[1], rejeitou um importante e agressivo pedido de anulação da sentença arbitral de 9 de Março de 2017, proferida, em sede de arbitragem internacional, pelo Court of Arbitration for Sport (CAS), no caso RFC Seraing v. FIFA, CAS 2016/A/4490.
O pedido de anulação baseou-se, entre outros motivos, na falta de independência dos árbitros do CAS, pelo facto de a Fédération Internationale de Football Association (FIFA), segundo o pedido, ser o principal financiador do CAS, enquanto seu «principal cliente» – por força da explosão de litígios relativos ao futebol internacional e da previsão da arbitragem necessária nos estatutos da FIFA –, pelo que a perda deste importante «cliente» seria susceptível de influenciar as sentenças em detrimento das partes opostas à FIFA.
O ataque foi muito duro: a dependência em relação à FIFA é tão forte que, lê-se no pedido, «contrariamente aos juízes do Estado protegidos pelo seu estatuto de magistrados, os empregados do CAS e os árbitros sofreriam directamente no seu património privado, se a FIFA renunciasse à sua filiação de membro do CAS»[2].
O Tribunal Federal Suíço, na sua sentença de 20 de Fevereiro de 2018, rejeitou por completo o argumento, por um lado, por ter concluído que a independência financeira do CAS não pode ser posta em causa, na medida em que o valor anual da contribuição da FIFA ao CAS, como litigante, de cerca de 1.500.000 francos suíços, representa menos de 10% do orçamento anual do CAS (16.000.000 francos suíços) e, por outro lado, por não ter ficado, de forma alguma, demonstrado que exista uma tendência do CAS para dar razão à FIFA nos processos arbitrais em que esta é parte.
Desta sentença do Tribunal Federal Suíço resulta, porém, um dado muito importante para ponderação futura: mais de 65% dos processos actualmente decididos pelo CAS em sede de arbitragem internacional respeitam ao futebol e, mesmo que a maioria destes não tenha directamente a FIFA como parte, atingem-na indirectamente por respeitarem a litígios que têm como partes as confederações continentais, como a Union of European Football Associations (UEFA), ou federações nacionais de futebol. Um dado que ilustra bem a importância crescente que o negócio do futebol tem como «cliente» da arbitragem internacional e, naturalmente, também das arbitragens domésticas.
É, aliás, muito interessante notar que o caso RFC Seraing v. FIFA, decidido pela sentença do CAS posta em causa no pedido de anulação, ao contrário do que acontecia com os tradicionais processos que opunham os atletas às federações, respeita precisamente ao tema quente do modelo de financiamento dos clubes de futebol, ou seja, à proibição pela FIFA, a partir de 2008, mas com efeito real em 2015, da propriedade por terceiros dos direitos económicos dos jogadores de futebol – o Third Party Ownership (TPO).
O famoso e polémico TPO permitiu e promoveu, nos últimos anos, sobretudo nos mercados da América Latina e do sul da Europa (como Espanha e Portugal), o desenvolvimento do negócio das transferências dos jogadores de futebol, com grandes vantagens para estes, para os clubes e para terceiros financiadores envolvidos, mas suscitando dúvidas sobre a transparência dos financiamentos, sobre os conflitos de interesses envolvidos e até sobre a manipulação de resultados que permitiria.
No caso em análise, a sentença do CAS de 9 de Março de 2017 confirmou a decisão da FIFA que condenou o clube, que violara a proibição, na interdição de registar novos jogadores por três períodos de registo completos e sucessivos.
Desde a sua constituição em 1984, o CAS sofreu ataques sucessivos que questionaram a independência e imparcialidade dos seus árbitros, como aconteceu em 1992 (o caso Gundell), em 2003 (o caso Lazutina) e em 2016 (o caso Claudia Pechstein), fundados sobretudo na excessiva influência do Comité Olímpico Internacional (COI) no CAS, por via do financiamento do seu orçamento, e no desequilíbrio existente entre o poder de nomeação de árbitros para a lista fechada de árbitros do CAS pelas federações internacionais em relação às associações de atletas.
Apesar de os pedidos de anulação terem sido rejeitados pelos vários tribunais judiciais chamados a decidir, a verdade é que obrigaram o CAS a reformas profundas que procuraram garantir um processo arbitral equitativo e a independência dos árbitros – sobretudo através da independência do CAS em relação ao COI –, condições essenciais do sucesso da resolução dos litígios do mundo do desporto pela via da arbitragem internacional, institucionalizada no CAS.
Acontece, porém, que este novo caso RFC Seraing v. FIFA e o crescente peso do futebol como fornecedor de litígios a dirimir pela arbitragem internacional – e da FIFA como «cliente» do CAS – vêm demonstrar que essas reformas podem não ter sido suficientes e que novas soluções terão que ser encontradas, mas que não podem passar pelo agravamento das contribuições das partes litigantes, sob pena de impedirem a tutela efectiva dos direitos das partes menos fortes financeiramente, como os atletas.
O problema do financiamento da arbitragem internacional institucionalizada do desporto e a sua crescente dependência do futebol atinge também as instituições nacionais que se dedicam à arbitragem do desporto, uma vez que, à imagem do CAS, foi com base nos comités olímpicos nacionais que foi criada, nas últimas décadas, a maioria dos tribunais arbitrais de desporto na Europa [o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD), em Portugal, o Tribunal Español de Arbitraje Deportivo, em Espanha, a Chambre Arbitrale du Sport, em França, e o Tribunale Nazionale di Arbitrato per lo Sport, em Itália] e porque, também a nível nacional, o futebol assume um papel preponderante.
O caso português do TAD é um bom exemplo. Criado com o apoio do Comité Olímpico de Portugal, ao qual compete, por lei, a promoção da sua instalação e do seu funcionamento (artigo 1.º, n.º 4, da Lei n.º 74/2013, de 6 de Setembro), mais de 30% do orçamento anual do TAD é subsidiado pelo Comité Olímpico de Portugal (subsídio de 88.000 € em 2017).
E, tal como acontece com o CAS, o futebol é o principal «cliente» do TAD português: dos 284 processos pendentes nos últimos quatro anos no TAD, 110 tiveram como parte a Federação Portuguesa de Futebol, sendo certo que os quatro maiores «clientes» seguintes são a Liga Portuguesa de Futebol (58 processos) e os três maiores clubes de futebol nacionais (Futebol Clube do Porto, com 43 processos, Sporting Clube de Portugal, com 13 processos, e Sport Lisboa e Benfica, com 10 processos). Provavelmente, mais de 85% dos processos desde sempre pendentes no TAD estão relacionados com um único desporto: o futebol.
Entretanto, a bola continua a rolar e os milhões também. Neste Verão de 2018, na Rússia, joga-se o maior espectáculo do mundo, o Mundial de Futebol, em que 32 selecções nacionais de todo o mundo jogam 64 partidas de futebol, que serão vistas por mais de 3,2 mil milhões de pessoas e que se estima que provocarão o número recorde de mais de 8 mil milhões de interacções nas redes sociais, entre likes e comentários colocados sobretudo a partir de posts dos 736 jogadores participantes.
Um espectáculo grandioso que também é um negócio global. Terá o futebol a arte para evitar o próximo penalty contra a arbitragem, a melhor forma inventada para resolver os seus próprios litígios?
[1] Decisão do Cour de droit civil du Tribunal federal suisse de 20 de Fevereiro de 2018, no caso 4A_260/2017.
[2] Tradução portuguesa livre do original: «contrairement aux juges étatiques protégés par leur statut de magistrats, les employés du TAS et les arbitres souffriraient directement dans leur patrimoine privé, si la FIFA renonçait à son affiliation au TAS».
Nota: O autor escreve segundo a antiga ortografia.
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