Autoria: Joana Galvão Teles.
[1]Como é sabido, pelo Acórdão Achmea de 6 de março de 2018, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) decidiu que a cláusula arbitral constante do Tratado Bilateral de Investimento (TBI) celebrado entre a Holanda e a antiga Checoslováquia em 1991 (TBI Holanda-Eslováquia) é incompatível com o direito da União Europeia (UE).
Contudo, e como todos também sabem, a importância deste caso vai muito para além dos factos e dos montantes concretos em causa.
Quais foram, então, as consequências práticas do Acórdão Achmea?
Com efeito, a referida decisão do TJUE teve consequências políticas, jurídicas e económicas relevantes, com impactos significativamente diferentes, consoante se atenda à perspetiva dos Estados-Membros e da própria UE ou, por outro lado, à perspetiva dos investidores.
Consequências políticas
Desde logo, a discussão que está em causa é, essencialmente, política e deve ser compreendida e debatida no contexto mais amplo da discussão sobre o sistema Investor-State Dispute Settlement (ISDS) consagrado na maioria dos tratados de investimento.
Como a conceituada professora de direito na Universidade de Paris I Panthéon-Sorbonne e árbitra francesa Brigitte Stern demonstrou numa análise retrospetiva histórica muito interessante[2], a uma fase em meados do séc. XIX em que o Direito Internacional assentava na soberania dos Estados e no uso da força para servir os seus interesses e resolver disputas entre si, sucedeu-se uma fase de transferência de competências que foi ocorrendo dos Estados para instituições internacionais e novos atores privados através do desenvolvimento tecnológico e das comunicações internacionais. Claro exemplo disso foi, aliás, a própria criação da UE e a transferência de poderes dos Estados Europeus para a UE incluindo em matéria de investimento estrangeiro. O papel da arbitragem internacional de investimento desenvolveu-se bastante e os Estados deixaram de ser as únicas fontes de direito na medida em que organizações internacionais e corpos privados tornaram-se responsáveis pelo desenvolvimento de soft law, culminando com um grande passo que foi dado em 1965 com a adoção da Convenção ICSID[3].
A ideia subjacente ao ICSID foi a de criar uma instituição arbitral que proporcionasse aos investidores estrangeiros um meio de ação direta a nível internacional contra o Estado que tenha violado as normas protetoras do investimento realizado, providenciando por um foro neutro e livre das influências políticas, sendo essencial que os árbitros sejam independentes e imparciais.
Com a adoção da Convenção ICSID, o consentimento dado pelos Estados, a celebração de contratos e de mais de 3000 TBI, a arbitragem de investimento desenvolveu-se e cresceu desde a década de 70, o que correspondeu naturalmente a uma maior limitação da soberania dos Estados.
Atualmente, e como tem sido constatado pelos vários especialistas e práticos na área, a arbitragem de investimento está num momento de crise existencial, tendo sido alvo de diversas críticas por parte dos Estados (incluindo não-membros da UE) em que o Acórdão Achema foi um marco impulsionador decisivo.
As críticas têm tido diversos fundamentos, desde a ideia pré-concebida, que dados empíricos demonstram ser incorreta, de que haveria uma tendência de favorecer ilegitimamente as empresas privadas perante os Estados, que habitualmente perderiam os referidos processos, à invocada falta de imparcialidade e independência dos árbitros, à alegada falta de transparência e publicidade das decisões, à ausência de recurso, entre outros fatores que, noutra perspetiva, seriam inclusive as vantagens proporcionadas pela arbitragem internacional. As críticas ao sistema ISDS são globais e precipitaram reformas globais, que vão além da UE.
No que se refere à UE, a principal oposição aos TBI intra-UE tem sido levada a cabo pela Comissão Europeia desde há já algumas décadas e por diversas vias, no sentido de defender o âmbito de proteção e a prevalência das regras de direito da União. A referida oposição explica-se por razões e questões político-jurídicas complexas relacionadas com a repartição de competências, sobretudo de poder regulatório, entre, por um lado, os Estados-Membros e a UE e, por outro lado, entre a União e Estados-Membros e os tribunais arbitrais e organismos como o ICSID, criados pelos Estados como organismos independentes do poder estadual (cfr. por exemplo, o Caso Micula c. Roménia iniciado em 2005 e decidido, num tribunal arbitral em 2013, o qual continua por resolver e pendente em várias jurisdições).
Com o Acórdão Achmea, a questão da incompatibilidade do TBI Holanda-Eslováquia intra-UE com o Direito da União é então decidida também pelo TJUE sendo particular, à afirmada invalidade do mecanismo de resolução de litígios escolhido no TBI intra-UE em causa, que é a arbitragem, criando pelo menos a possibilidade de se tornar um sentido jurisprudencial a ser seguido por outros tribunais.
Ainda no âmbito das consequências políticas, pouco depois do Acórdão Achmea, a Comissão Europeia proferiu uma Comunicação em 19 de julho de 2018 sobre as consequências desse acórdão no sentido de reafirmar i) a “incompatibilidade incontestável” dos TBI com o direito da UE; ii) a inaplicabilidade das cláusulas de arbitragem de investimento entre investidores e Estado, por serem inválidas; bem como iii) que o Direito da UE contém normas substantivas e processuais que conferem um grau de proteção adequado aos investimentos transfronteiriços na UE (o que, como se sabe, não é exatamente assim).
Finalmente, em 15 de janeiro de 2019, os Estados-Membros proferiram uma declaração política relativa às consequências legais do Acórdão Achmea, em que se comprometeram a fazer cessar os respetivos TBI intra-UE através de um tratado plurilateral ou de vários tratados bilaterais, dizendo expressamente aos investidores que não devem iniciar novas arbitragens ao abrigo de Tratados intra-UE e comprometendo-se a assegurar proteção legal efetiva dos investidores contra medidas estatais que fossem objeto de arbitragens intra-UE (pendentes).
Com efeito, nesta situação ocorreram duas transferências de competências pelos Estados Europeus – uma para a UE e outra através dos respetivos TBI intra-UE –, que colidem e cuja regulação jurídica entra em tensão, pretendendo a Comissão Europeia e também o TJUE ter possibilidade de controlar a aplicação e a interpretação do Direito da União, o que, aliado a uma certa “desconfiança” em relação aos tribunais arbitrais e ao facto de os mesmos não serem, para estes efeitos, considerados órgãos jurisdicionais, conduziu a este resultado de declaração da incompatibilidade das cláusulas de arbitragem de investimento nos Tratados de Investimento com o direito da União.
Consequências jurídicas
Do ponto de vista jurídico, as questões que se colocam são complexas e partem de uma tensão que tem vindo a crescer ao longo dos últimos anos entre, por um lado, o Direito da UE e, por outro, o direito da arbitragem internacional[4].
Após um longo período de tempo em que Direito da UE e direito da arbitragem internacional eram mundos paralelos, que coexistiram de forma pacífica e quase sem se tocarem, na última década esta situação mudou, sendo agora realidades em contacto e, mais do que isso, em conflito. O que se explica por várias razões, tais como, entre outras, a tensão e diferença de conceitos, e respetiva extensão, de “ordem pública” que as decisões arbitrais terão de respeitar no âmbito de um controlo ao abrigo da UE, nesta sede cada vez mais abrangente, e à luz do direito internacional da arbitragem, no qual o conceito de ordem pública é tendencialmente cada vez mais restritivo[5].
No que se refere às consequências jurídicas do Acórdão Achmea, e no seguimento da Comunicação da Comissão e da Declaração dos Estados-Membros mencionadas supra, foi assinado recentemente, em 5 de maio de 2020, entre 23 Estados-Membros, o Acordo de cessação dos Tratados Bilaterais de Investimento entre os Estados-Membros da UE (Acordo). Em termos gerais, e sem prejuízo de eventuais discussões sobre a respetiva validade e aplicabilidade, o Acordo determina a cessação dos referidos Tratados e das sunset clauses contidas nos mesmos, respetivamente, indicados nos Anexos A e B do acordo (artigos 2.º e 3.º do Acordo), com efeitos a produzirem-se 30 dias após a data na qual o respetivo Depositário receba o segundo instrumento de ratificação, aprovação ou aceitação das Partes relevantes (artigo 16.º do Acordo). No caso português, tal significa a cessação de dez TBI celebrados entre, por um lado, Portugal e, por outro lado, a Alemanha, a República Checa, a Roménia, a Letónia, a Hungria, a Croácia e a Eslováquia (anexo A) e a sunset clause contida no TBI celebrado entre Portugal e a Polónia (cfr. previsto no Anexo B do Acordo).
Além disso, nos termos do Acordo, os Estados regularam os efeitos da cessação dos Tratados nas arbitragens pendentes e novas que se iniciarem, devendo as Partes Contratantes do TBI relevante informar o Tribunal Arbitral das consequências legais do Acórdão Achmea, nomeadamente da incompatibilidade das convenções de arbitragem contidas nos Tratados intra-UE e a consequente inaplicabilidade, de acordo com o texto previsto no Anexo C do Acordo e, no caso de já haver uma decisão arbitral que esteja pendente nos tribunais judiciais de um Estado, devem pedir ao tribunal estadual competente, incluindo em Estados terceiros, que impugnem ou anulem a sentença que se ache sujeita a uma ação de impugnação ou anulação ou a uma ação de reconhecimento e/ou execução (artigo 7.º do Acordo). Por seu turno, as arbitragens concluídas antes de 6 de março de 2018 e cuja sentença haja sido devidamente cumprida antes dessa data ou não seja objeto de ação de impugnação, de revisão, de anulação, de execução ou de outro procedimento pendente nessa data não são reabertas e ficaram salvaguardadas (artigo 6.º do Acordo). Naturalmente, nos termos do Acordo, as cláusulas arbitrais de investimento não podem dar lugar a novas arbitragens (artigo 5.º do Acordo).
Finalmente, o Acordo vem regular uma possibilidade de os Estados e/ou os investidores iniciarem um processo de “diálogo estruturado” nas arbitragens pendentes anteriores ao Acórdão Achmea para chegarem a acordo (artigo 9.º do Acordo), bem como reconhece a possibilidade de as partes recorrerem aos meios judiciais disponíveis ao abrigo das leis nacionais (artigo 10.º do Acordo).
Ora, considerando o teor do Acordo, poder-se-á esperar que, se o mesmo for cumprido, os tribunais arbitrais e os tribunais nacionais com sede nos Estados-Membros tenderão, em princípio, a seguir o Acórdão Achmea (o mesmo já não sucederá com os tribunais nacionais de Estados terceiros e tribunais arbitrais com sede em Estados terceiros não-membros da UE, não sujeitos ao direito da UE, bem como nas arbitragens ICSID).
No entanto, refira-se que nem todas as tensões ficam resolvidas no seio da UE. Seguindo a abordagem Solange no que se refere à relação entre si e o TJUE[6], e recentes decisões em sentido similar, tendo o investidor Achmea recorrido ao Tribunal Constitucional Alemão, este ainda poderá vir a considerar que o TJUE foi para além dos seus poderes (atuou ultra vires) quando decidiu a incompatibilidade da cláusula de arbitragem de investimento inserida no TBI Holanda-Eslóvaquia com o direito da União, tendo violado os direitos do investidor decorrentes do Tratado e da Constituição, a qual também se aplicava neste caso, pois a sede da arbitragem era na Alemanha. Além disso, o Tribunal Constitucional alemão poderá ainda vir a considerar que o consentimento dado pelo Estado Alemão ao Acordo também é inconstitucional[7]-[8].
Daí que não seja ainda seguro que as tensões entre União e Estados-Membros, bem como entre direito da União e direito da arbitragem internacional tenham terminado, pois a Comissão Europeia considera a hipótese de iniciar processos por infração contra a Alemanha pelas decisões do Tribunal Constitucional alemão.
Ainda que se possa discordar e considerar que a posição da Comissão e do TJUE assenta numa “visão absolutista” de unificar e controlar o papel do TJUE na interpretação e aplicação do Direito da União, a verdade é que, considerando as consequências jurídicas referidas, a arbitragem de investimento entre Estados-Membros da UE desaparecerá (com exceção eventualmente do Reino Unido); e, por outro lado, com o que sabemos que se passa com os Free Trade Agreements em que a UE é parte, e com o projeto de um Tribunal Multilateral de Investimento, parece que se confirma essa morte da arbitragem de investimento na Europa, o que corresponderá a um regresso da justiça aos Estados e à UE.
Consequências económicas
Do ponto de vista económico, a referida decisão e o mencionado Acordo afetarão profundamente o nível de proteção conferido a investidores da UE com investimentos noutros Estados-Membros, caso não venham a ser assegurados novos mecanismos de proteção dos respetivos investimentos que estavam protegidos e que agora deixam de o estar. Com efeito, os investidores em causa ficam sem as proteções conferidas pelos TBI e sem os mecanismos de resolução de litígios diretos de arbitragem contra Estados-Membros, vendo assim violadas as suas legítimas expectativas quanto à proteção conferida ao seu investimento.
Deste modo, quanto ao investimento futuro, pode antecipar-se que é possível que os investidores estrangeiros de Estados-Membros da União deslocalizem os investimentos para Estados que confiram maior proteção, ou seja, fora da UE, bem como poderá acentuar-se uma desigualdade entre os investidores estrangeiros fora da UE que invistam em Estados da União e os próprios investidores estrangeiros da UE que pretendam investir noutros Estados-Membros, já que os primeiros poderão ter uma melhor proteção económica do seu investimento do que os segundos.
Para concluir, parece que a discussão e garantia de soluções alternativas para proteção legal efetiva aos direitos dos investidores dentro da UE é fundamental e urgente, tendo sido um compromisso que os Estados-Membros e a própria Comissão Europeia assumiram nas suas declarações políticas.
Acresce que, como se viu, a questão vai muito para além da UE e da criação do Tribunal Multilateral de Investimento (que não se sabe sequer se irá resolver todas as críticas ou problemas apontados à arbitragem de investimento), a qual poderia, quem sabe, e sem prejuízo da(s) solução(ões) quanto às proteções substantivas dos investimentos, ser mais facilmente resolvida através de uma aceitação e equiparação dos tribunais arbitrais aos tribunais judiciais para efeitos do controlo do TJUE e/ou da criação de mecanismos de controlo último por parte da União e dos Estados-Membros, tal como existe a nível estadual.
[1] O presente artigo corresponde, de forma um pouco ajustada e mais desenvolvida, à minha intervenção como oradora na 3.ª edição do “Encontro de Arbitralistas Lusófonos”, organizado pela sociedade de advogados Derains & Charavi no âmbito da Paris Arbitration Week (PAW), no dia 9 de julho de 2020, na qual tive a oprtunidade de participar. Gostava de agradecer, em especial, aos meus colegas e amigos Filipe Vaz Pinto e Carolina Pitta e Cunha, que me facultaram alguns elementos bibliográficos e trabalhos anteriores da sua autoria que também contribuíram em parte, e foram muito úteis, para a minha análise sobre o tema.
[3] Convenção para a Resolução de Diferendos Relativos a Investimentos entre Estados e Nacionais de Outros Estados (Convenção ICSID) disponível aqui.
[4] Para maior desenvolvimento do tema, cfr. George A. Bergmann, in Arbitration International, Volume 28, Issue 3, “Navigating EU Law and the Law of International Arbitration”, (LCIA 2012), pp. 397-445.
[5] Idem.
[6] Cfr., por exemplo, http://arbitrationblog.kluwerarbitration.com/2020/05/21/the-cjeu-german-constitutional-court-debate-and-impact-on-achmea-and-the-termination-agreement/?doing_wp_cron=1595006989.1606929302215576171875.
[7] Idem.
[8] Note-se que, por exemplo, também o Tribunal Constitucional Português veio, recentemente e já após o “Encontro de Arbitralistas Lusófonos”, realizado em 9 de julho de 2020, pronunciar-se sobre a relação entre o Direito da União Europeia e o direito constitucional interno dos Estados, nomeadamente do Estado Português, o qual pode ser consultado aqui.
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