Autoria: João Lima Cluny.
No passado dia 29 de Agosto de 2018, a Cour d’appel de Bruxelas proferiu uma decisão que foi largamente mencionada como podendo causar um “terramoto” no mundo da arbitragem desportiva. Será mesmo assim?
Ao analisar um litígio que envolvia, entre outros, a Doyen Sports Investments Limited (“Doyen”) e o clube belga ASBL Royal Football Clube Seraing United (“Seraing”) contra a FIFA, a UEFA e a La Union Royale Belge des Sociétés de Football Association ASBBL (“ASBL”), a Cour d’appel de Bruxelas decidiu que a cláusula de arbitragem contida nos Estatutos da FIFA (actuais artigos 57 e seguintes), que determina que o Tribunal Arbitral do Desporto em Lausanne (“TAS”) é a entidade competente para decidir os litígios entre a FIFA, as Federações suas associadas, as Confederações, as Ligas, os Clubes, os Jogadores, os Árbitros, os intermediários e os agentes licenciados para a organização de jogos, não respeita e, consequentemente, não pode ser reconhecida como uma cláusula de arbitragem válida à luz dos artigos 1681.º e 1682.º, n.º 1, do Code Juciciaire belga, e do artigo II da Convenção de Nova Iorque sobre o Reconhecimento e a Execução de Sentenças Arbitrais Estrangeiras.
O litígio em análise iniciou-se com um pedido, apresentado perante os Tribunais belgas pela Doyen e pelo Seraing, de invalidade das regras respeitantes à proibição do TPO (third party ownership) aprovadas pela FIFA e, consequentemente, aplicadas pela UEFA e pela ASBL. Na sua resposta, a FIFA e as demais Demandadas invocaram a incompetência dos Tribunais belgas para analisar o litígio em causa, com base na cláusula de arbitragem contida no artigo 59 dos Estatutos da FIFA. Perante tal argumento, a Doyen e o Seraing questionaram a validade da cláusula de arbitragem dos Estatutos da FIFA, alegando que a mesma não respeita os requisitos estabelecidos no artigo 1681.º do Code Juciciaire belga, que é inspirado no artigo II da Convenção de Nova Iorque.
Foi, então, esta questão que, juntamente com a decisão sobre um pedido de medidas provisórias (suspensão das sanções impostas pelo TAS ao clube belga por ter violado a proibição do TPO), foi analisada e decidida pela Cour d’appel de Bruxelas no passado mês de Agosto.
A cláusula arbitral contida nos Estatutos da FIFA, em específico o artigo 59.º, n.º 1, prevê que:
“As confederações, as federações associadas e as ligas devem reconhecer o TAS como uma autoridade judicial independente e devem garantir que os seus membros, jogadores afiliados e árbitros respeitam as decisões do TAS. A mesma obrigação aplica-se aos intermediários e aos agentes licenciados para a organização de jogos”.
Por sua vez, o artigo 1681.º do Code Juciciaire belga estipula que:
“Uma cláusula arbitral é o acordo através do qual as partes submetem a arbitragem todos os litígios ou alguns dos litígios que surgem ou podem surgir entre elas a respeito de uma relação jurídica determinada, contratual ou extracontratual.”
Finalmente, o artigo II da Convenção de Nova Iorque determina que:
“1. Cada Estado Contratante reconhece a Convenção escrita pela qual as Partes se comprometem a submeter a uma arbitragem todos os litígios ou alguns deles que surjam ou possam surgir entre elas relativamente a uma determinada relação de direito contratual, ou não contratual, respeitante a uma questão susceptível de ser resolvida por via arbitral.”
Ao analisar os preceitos agora elencados, a Cour d’appel de Bruxelas concluiu que o âmbito da cláusula de arbitragem dos Estatutos da FIFA era tão lato que não cumpria o requisito de ser aplicável a uma relação jurídica determinada a respeito de uma matéria específica, pretendendo, ao invés, tal cláusula atribuir ao TAS a competência para decidir todos os litígios com dimensão internacional entre as entidades do mundo do futebol.
Para fundamentar a sua conclusão, a Cour d’appel nota que a cláusula de arbitragem está redigida de forma tão ampla que o que acaba por especificar são apenas os litígios que estão fora do âmbito de competência do TAS (as “excepções”, nas palavras da Cour d’appel, que são as que verdadeiramente cumprem com o requisito de dizerem respeito a uma relação jurídica determinada), pelo que todos os demais casos e litígios acabariam por cair no âmbito da cláusula de arbitragem e, consequentemente, pertencer à competência daquele Tribunal.
A Cour d’appel justifica ainda a razão pela qual não aceitou os argumentos apresentados pela FIFA, segundo os quais a cláusula de arbitragem cumpre com o disposto no artigo II da Convenção de Nova Iorque na medida em que: (i) a cláusula de arbitragem apenas é aplicável a litígios relacionados com as actividades e decisões da FIFA que estejam abrangidas pelo seu objecto social e pelas suas relações com os seus afiliados; e (ii) o TAS, de acordo com os seus Estatutos, só tem competência para decidir litígios a respeito de matérias desportivas. Ora, ao analisar estes argumentos da FIFA, a Cour d’appel considerou, ao invés, que, para efeitos de cumprimento do requisito de ser aplicável a uma relação jurídica determinada, não é suficiente definir o âmbito de uma cláusula de arbitragem através de uma simples referência para a actividade (ou o objecto social) indicada nos estatutos de uma determinada entidades. E notou ainda que o facto de o TAS apenas ser competente para dirimir litígios de natureza desportiva não é suficiente para se ter por verificado o requisito de a cláusula de arbitragem ser aplicável a uma relação jurídica determinada, pois que, por um lado, a menção à natureza desportiva do litígio não está sequer mencionada na cláusula de arbitragem dos Estatutos da FIFA e, por outro lado, os Estatutos do TAS podem ser alvo de alteração, nomeadamente alargando a competência do TAS para outras matérias para além das de natureza desportiva.
Por ora, a decisão proferida pela Cour d’appel de Bruxelas apenas tem efeitos na Bélgica, uma vez que foi perante os seus Tribunais e de acordo com a sua legislação que foi analisada a validade da cláusula de arbitragem dos Estatutos da FIFA. Acresce que, a decisão proferida não afecta, sequer, a anterior decisão do TAS que julgou válida a proibição do TPO e, consequentemente, sancionou o Seraing pela sua violação. Porém, cumpre notar que o artigo 1681.º do Code Juciciaire belga, que esteve na base da decisão da Cour d’appel, reproduz, no essencial, o artigo II da Convenção de Nova Iorque e, especialmente, que o requisito da relação jurídica determinada tem origem na Convenção de Nova Iorque e está presente na legislação de diversos países. Com efeito, uma questão semelhante foi analisada e decidida num sentido próximo pelo Supremo Tribunal de Espanha, em 2005, no chamado caso Roberto Heras. Concluiu, na altura, o Supremo Tribunal de Espanha pela invalidade de uma cláusula de arbitragem de atribuição de competência ao TAS que fora redigida em moldes semelhantes e incluída na Constituição da União Ciclista Internacional (e transposta para os estatutos das federações nacionais de ciclismo), uma vez que, não só considerou que os atletas não tinham uma verdadeira opção de aceitar ou rejeitar aquela cláusula, isto é, não aceitavam voluntariamente a cláusula de arbitragem (aspeto não apreciado pela Cour d’appel), mas também, e com base em argumentos análogos aos agora usados pela Cour d’appel, que a cláusula de arbitragem era demasiado abrangente.
Neste contexto, torna-se muito provável que esta questão venha a ser colocada perante Tribunais de outros países, aguardando-se para ver como é que tais Tribunais irão aplicar a exigência de uma relação jurídica determinada.
No caso decidido pela Cour d’appel, quer a Doyen, quer o Seraing já haviam solicitado (ainda antes desta decisão) que as questões por si levantadas fossem submetidas ao Tribunal de Justiça da União Europeia (“TJUE”), por forma a que este pudesse pronunciar-se sobre a validade, à luz do Direito Europeu, da proibição do TPO e da cláusula de arbitragem. Se tal vier a suceder, então, a decisão a proferir pelo TJUE será certamente um marco relevante no mundo da arbitragem desportiva, quer confirme ou negue a validade da cláusula arbitral. Se o TJUE concluir no mesmo sentido da Cour d’appel e do Supremo Tribunal Espanhol poderemos estar perante uma mudança relevante no sistema de resolução de litígios do desporto internacional.
Por ora, é importante notar que, tal como foi recentemente publicitado em comunicado de imprensa do Conselho Internacional de Arbitragem Desportiva (“ICAS”) (http://www.tas-cas.org/fileadmin/user_upload/ICAS_statement_11.09.18.pdf), a decisão da Cour d’appel não coloca em causa a legalidade e legitimidade do TAS ou do regime de arbitragem desportiva, mas apenas o problema sobre se se a cláusula de arbitragem está correctamente redigida nos termos da legislação aplicável. Neste sentido, e independentemente de se concordar ou não com o sentido da decisão proferida pela Cour d’appel, as instituições desportivas estão, agora, claramente alertadas para a necessidade de reverem, com particular cautela, as suas cláusulas de arbitragem e, quando tal se mostre necessário, introduzir as alterações adequadas.
Um último ponto para realçar que os fundamentos invocados pelo Tribunal belga para declarar a invalidade da cláusula de arbitragem não são de aplicação exclusiva ao mundo do desporto. Com efeito, a decisão tomada é clara: não é válida a cláusula de arbitragem que esteja redigida de forma a procurar incluir no seu âmbito todos os litígios que possam emergir entre duas partes, independentemente das matérias que as partes tenham a dirimir. A decisão proferida aponta para uma visão restritiva do requisito constante do artigo II da Convenção de Nova Iorque e pode, se se generalizar, tornar-se também num marco relevante para o mundo da arbitragem em geral, independentemente da natureza das matérias em discussão.
(1) Artigo revisto em 26 de Setembro de 2018.
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