Autoria: Fátima Dermawan.
Em 5 de Novembro de 2019, a Imprensa Oficial de Macau publicou a Lei n.º 19/2019, a nova lei de arbitragem em Macau (“Nova Lei de Arbitragem”), com entrada em vigor em 4 de Maio de 2020. O texto completo do diploma legal pode ser acedido através deste link.
A Nova Lei de Arbitragem substitui o atual regime, vigente há mais de 20 anos, e introduz alterações significativas em matéria de resolução arbitral de litígios em Macau. As principais mudanças incluem:
1. Um único diploma para arbitragem interna e para arbitragem internacional (Capítulo I, artigos 2.º e 3.º)
De acordo com o regime anterior, a arbitragem interna e a arbitragem internacional em Macau eram reguladas em dois diplomas distintos: Decreto-Lei n.º 29/96, de 11 de Julho, e Decreto-Lei n.º 55/98, de 23 de Novembro[1]. Esses dois diplomas foram revogados com a Nova Lei de Arbitragem, que agora é aplicável quer à arbitragem interna, quer à arbitragem internacional.
Assim, a Nova Lei de Arbitragem regula num único diploma a arbitragem interna e a arbitragem internacional. No entanto, diferentemente dos Decretos-Leis anteriores, este diploma não contém uma definição de “arbitragem internacional” ou “arbitragem comercial externa”[2]. Na verdade, a nova lei não distingue em nenhum aspeto o regime aplicável, por um lado, à arbitragem interna e, por outro lado, à arbitragem internacional.
A opção de regular de forma (quase) unitária a arbitragem interna e a arbitragem internacional é uma tendência observada nas maiorias das leis modernas de arbitragem, nomeadamente das que foram adotadas com base na Lei Modelo da UNCITRAL. Porém, na maioria dessas leis, existem disposições que visam aplicar-se exclusivamente à arbitragem interna e/ou à arbitragem internacional, por referência a uma definição de “arbitragem internacional”, o que na nova lei macaense não se verifica.
2. Elenco do que constitui uma convenção de arbitragem reduzida a escrito (Capítulo II, artigo 11.º)
A Nova Lei de Arbitragem continua a exigir que a convenção de arbitragem seja reduzida a escrito. No entanto, em sintonia com as disposições da Lei Modelo UNCITRAL, a Lei n.º 19/2019 amplia o elenco de formas consideradas, para o efeito desta lei, como reduzida a escrito. Assim, à luz da Nova Lei de Arbitragem, considera-se reduzida a escrito a convenção de arbitragem que conste de (i) documento assinado pelas partes; (ii) troca de cartas, telecópia, correio eletrónico ou outro meio de telecomunicação de que fique prova escrita; (iii) suporte eletrónico, magnético, ótico, ou de outro tipo, que ofereça as mesmas garantias de fidedignidade, inteligibilidade e conservação que os documentos em suporte físico; e, por fim, (iv) quando exista troca de uma petição e de uma contestação em processo arbitral, em que a existência de tal convenção seja alegada por uma parte e não seja negada pela outra.
3. Tutela em casos de emergência (Capítulos III e V)
A Nova Lei de Arbitragem prevê medidas importantes em matéria de situações de urgência como, por exemplo, a adoção de um conjunto de regras específicas aplicáveis às denominadas “arbitragens de emergência” e a adoção de um capítulo autónomo dedicado a regular o decretamento de “medidas provisórias e ordens preliminares”, em linha com as soluções consagradas na Lei Modelo da UNCITRAL.
Relativamente às medidas provisórias decretadas fora de Macau, a Nova Lei de Arbitragem pela primeira vez estipula e densifica o regime para o reconhecimento dessas medidas, equiparando o regime ao do reconhecimento de sentenças arbitrais proferidas fora de Macau.
4. Procedimento para solicitar assistência do tribunal na obtenção de prova (Capítulo VI, Secção II, artigo 61.º)
Ainda que o Decreto-Lei n.º 29/96 e o Decreto-Lei n.º 55/98 previssem que as partes ou o tribunal em processos arbitrais pudessem solicitar aos tribunais judiciais de Macau assistência para obtenção de provas, o procedimento e formalidades necessários estavam omissos desses diplomas anteriores. Assim, a Nova Lei de Arbitragem estipula um regime direto e simples: a parte requerente deve indicar o pedido e os factos que o justificam, mencionar as questões sobre as quais a prova há de recair e identificar os documentos ou testemunhos que devem ser apresentados. Toda a matéria probatória é recolhida pelo tribunal judicial e, depois, o resultado, objetos ou documentos apresentados são remetidos para o tribunal arbitral. Ademais, o processo de obtenção de provas reveste caráter urgente.
5. Possibilidade de recurso da decisão arbitral perante outro tribunal arbitral (Capítulo VI, Secção III, Artigo 67.º)
Uma das principais críticas ao antigo regime dualista de arbitragem em Macau era a de que o mesmo permitia que as partes estipulassem por acordo escrito uma cláusula de recorribilidade aos tribunais judiciais, o que diretamente invalida o propósito da resolução de litígio pela via arbitral, já que transforma a arbitragem numa espécie de tribunal de primeira instância. Assim, de acordo com a Lei n.º 19/2019, uma decisão arbitral só pode ser recorrível para outro tribunal arbitral se assim for estipulado pelas partes até ser proferida a decisão arbitral. Tal acordo deve obrigatoriamente regular os termos do recurso, sob pena de nulidade.
6. Arbitragem de litígios de natureza administrativa (Capítulo X)
Tal como no regime antigo, a Nova Lei de Arbitragem prevê, igualmente, a possibilidade de recorrer à via arbitral em litígios de natureza administrativa, desde que tais litígios incidam exclusivamente sobre (i) contratos administrativos, (ii) responsabilidade da Administração ou dos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes por prejuízos decorrentes de atos de gestão pública ou (iii) direitos subjetivos ou interesses legalmente protegidos de conteúdo patrimonial.
A Lei n.º 19/2019 introduz duas particularidades quanto à arbitragem de litígios de natureza administrativa. Em primeiro lugar, o novo regime limita a escolha do direito material aplicável a ser convencionado pelas partes, restringindo em exclusivo a aplicação do direito substantivo de Macau. Além disso, as sentenças provenientes de arbitragens de litígios administrativos serão obrigatoriamente disponíveis para consulta publica.
Conclusão – um novo capítulo para arbitragem em Macau?
Como afirma a Assembleia Legislativa de Macau, a Lei n.º 19/2019 é o primeiro passo de uma série de inovações que visam colocar Macau como ponto de referência para a arbitragem lusófona na região de acordo com os parâmetros internacionais, especialmente devido à sua localização estratégica, crescimento económico e existência de muitos profissionais bilingues que facilitam a comunicação entre investidores chineses e empresários de países lusófonos. Enquanto isso, a atual Secretária para Administração e Justiça Sonia Chan afirma que o Governo já começou as negociações e estudos para eventualmente unir os cinco centros de arbitragem existentes em Macau numa única instituição especializada internacional, como também visa abrir as portas de Macau para profissionais estrangeiros.
A Nova Lei de Arbitragem prevê uma ferramenta nova para o desenvolvimento da arbitragem em Macau. Por mais que o software talvez esteja pronto, o hardware – instituições arbitrais e conhecimento técnico jurídico – será ainda determinante no sucesso de Macau enquanto sede de arbitragem de eleição.
Notar: O presente texto tem intuitos meramente informativos e não constitui qualquer aconselhamento jurídico. Dado que o aconselhamento jurídico deve ser adaptado às circunstâncias específicas de cada caso, nada do que consta do presente texto deve ser utilizado em substituição do aconselhamento de um advogado qualificado em Macau.
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